1.3.24

O mais cruel odor a formol e naftalina


Quem cala consente, e ela
(mas teria de ser ela, não havia mais ninguém?)
não calava nem consentia.
Mesmo correndo o risco de irritar o irritável
Diogo Vaz Pinto, recusava-se a pertencer
a isso que via designar como
o perfil mais geral do escritor português.
O perfil? E porque não uma imagem frontal,
na coragem de quem olha suportando os olhos
de quem é olhado?
E porquê geral e não particular? E porquê
nem sequer um nome
que desse rosto à miséria comum?
E não havia ninguém que se salvasse na enxurrada?
A democracia? Quem eram estes,
a Agustina, o Ruben A.?
Gente que medrava na naftalina dos privilegiados
de até setenta e quatro.
Eram os mesmos, antes e depois, figuras
do poder e da complacência.
Não seria ingénua,
evitaria profissões de fé
nessa coisa escura e esconsa
a que chamavam literatura portuguesa
(sem leitores, sem dignidade,
sem crítica que merecesse esse nome)
e que há muito vegetava
em estratégias químicas de sobrevivência.
Recusava o formol, mas não acabaria na vala comum.






28.2.24


Temperatura sentida

A gradação segundo
uma escala aberta
que tinha princípio, mas
não teria fim. O frio.




9.2.24


As políticas da hospitalidade

Admitia
(por fim admitia. Demorara
a tocar e a ser tocada,
demorara ainda mais
a conhecer o seu corpo,
a desejar fazer-se desejada)
que nunca fora muito generosa.



6.2.24


Voz narrativa

Nem todo o tempo tinha de ser tempo.



31.1.24


Fascista, porventura

Gostava de ver os bois chamados pelo nome.
Ciganos, se eram ciganos,
pretos, os pretos, se essa era a sua cor.
Ou o que fossem, imigrantes, refugiados,
miseráveis, de facto,
gente que deveria pedir licença para existir,
aceitar o trabalho, se houvesse trabalho,
e desaparecer sem protestar.
A lei e a ordem eram a única higiene
da cidade.
Por vezes não bastava a limpeza do quotidiano,
era precisa outra, mais definitiva,
que raspasse fundo a imundice do mundo
e confrontasse os hábitos pervertidos
da nação.
O sangue há muito que
se corrompia de permissividade. 
Há muito que a verdade perdera o cunho
e o valor. Há muito que se tolerava o intolerável.
Ninguém deveria fazer-se passar
pelo que não era.
Cada um e cada coisa no seu lugar, aquele
que os homens e a natureza lhes tinham atribuído. 
Aquele que mereciam aos olhos de Deus.

Quanto ao Ventura, gostava de o ouvir,
mas não votaria nele.
Parecia-lhe um bocado aciganado.




30.1.24


Meia mulher ou menos

Quatro filhos, três gatos,
dois cães, um marido
— por esta ordem.




25.1.24


Perguntas frequentes

Preferia que lhe dissessem
o que já sabia,
que dessem nome ao mal que
aceitara sem nome.
Que usassem os lugares-comuns que
se recusara a usar (reconhecia-os como
os limites da língua, os seus próprios
— podia tacteá-los,
se estendesse os dedos),
que lhe colocassem diante dos olhos
aquilo que os seus olhos recusavam ver.
E entre ver e não ver, entre levantar
o rosto e baixá-lo para os pés,
acabaria por reparar nas mãos — sujas
de carne e de solidão.
Talvez algures, na infância,
alguém já lho tivesse dito.




21.1.24


The Right to Remain Silent

Como o cheiro a perfume
que as visitas deixavam
quando saíam.
Abria as janelas,
lavava o rosto,
arrancava da pele
os resíduos do odor
da sua existência.




17.1.24


O Amor em Visita

Que alguém
se debruçasse sobre
as suas coxas.
Que avançasse a boca,
que
estendesse a língua
como se lhe sugasse
o sal do sangue.
Não perguntaria
nome, género ou idioma.
Fecharia os olhos,
separaria os lábios.



3.1.24


Polissemia e ética sexual

Perguntava-se
como é que,
na repressão da gramática e da moral,
da família, da igreja, da polícia e dos tribunais,
como é que,
depois de séculos de censura e de sujeição,
de proibições, infâmia e autos-de-fé,
as palavras tinham conservado
tanta insubmissão. Desobediência,
amor profano e compulsivo.
Que moral era essa que as fazia promíscuas
na língua e nos olhos,
num romantismo rude
que não mede perdas nem ganhos,
negociando o tempo como quem não pondera
o preço a pagar?





31.12.23


Baixeza moral

Dividir o mundo
e escolher a parte do poder.




29.12.23


Concreta como as palavras que lhe hão-de mastigar os ossos

O literal, acreditava, 
era única forma de literatura,
o elo elementar que ligava a língua
e o mundo.
O resto raramente passava
de pensamento mágico.
Tinha-o compreendido:
pesava as palavras como poderia,
no mercado (e não, não era
uma metáfora. Havia uma balança,
uma escala, um custo),
esperar que lhe pusessem preço.



21.12.23


Contra a interpretação

Saberia ser coisa
se a fizessem símbolo.
Coisa, corpo, carne,
forma, figura, função,
isso a que, na dúvida, chamava vida
e que não passaria, afinal,
do produto dúbio da própria dúvida.
A única certeza.



19.12.23


A verdadeira poesia

Como cão que hesita entre ladrar à lua
e perseguir em círculo a própria cauda.
Mastigar-se a si mesmo.



15.12.23


O dia seguinte

Com o que lhe restava de lucidez,
interrogava-se
se se reconheceria se se visse.
Se se teria visto, já, 
talvez um vulto
no espelho embaciado depois do banho.
Sabia quem era.
Poderia estender a mão e limpar o vidro,
unindo num gesto
o corpo que toca e aquele que é tocado,
a carne e a imagem,
o desejo e a desilusão.
Não diferiam.
Poderia fazer o que sempre fazia.
Envolver-se na toalha, sacudir o cabelo,
fechar os olhos e dirigir-se para o quarto.
Sabia o caminho.



13.12.23


Topografia

O lodo e a lama
nunca são bom sítio
para fazer cama.




26.11.23


Propedêutica da pornografia enquanto género literário

Primeiro: ensinar não
o que fazer, mas o que mostrar.
Saber o que esconder.
Segundo: desconfiar do corpo como
se desconfia das palavras
(a satisfação de um e a suficiência das outras
são apenas autocomplacência).
Terceiro: não pedir ao corpo
o que as palavras não dão.
Quarto: não pedir às palavras
(públicas e usadas)
a intimidade do tacto — nunca passam da pele.
Quinto: restringir e reduzir o vocabulário
(reprimir os nomes. Entre o calão e o manual
de anatomia, pouco resta por onde escolher.
Recusar os adjectivos, porque qualificam
o que é natureza. Bastarão os verbos
— prestar atenção
ao tempo, à pessoa e ao número).
Sexto: ceder à tentação 
e substituir as palavras por imagens.
Sétimo: distingui-las do obsceno — nunca
são senão simulação.









23.11.23


Autenticidade

Aceitaria ser investigada.
Despida, virada do avesso
à procura da etiqueta,
da marca, do local de produção
e da qualidade dos acabamentos.
O rigor do logótipo
talvez atestasse a contrafacção.
Era mais real do que o real,
mais ostensivo do que
as evidências de
quem paga para
mostrar o que pagou.
Vinha da feira,
e nem aí valia o que custara.
Usá-la-iam para trazer por casa.




25.9.23


Gender studies

La femme est une sorte de putain
(ainda Derrida, Glas, a ler
a família e a sexualidade em Hegel e Kant,
e para o último a poligamia será a natureza
do masculino. Para o homem, cada mulher
é apenas, digamos, um pedaço de carne.)
L´homme désire naturellement tout le sexe
et non une femme, il n’a affaire
qu’à des exemplaires de la féminité.
Il n’aime pas, il aime n’importe
quelle femme.

(O plural do próprio, o masculino,
e uma vez e outra outra mulher,
exemplares imperfeitos
de uma raça de fêmeas
que é preciso usar e reconduzir
aos limites da lei. Remeter ao redil,
controlar a voz, submeter à moral,
— e o que sabemos nós da moral?
Quem dita a lei? Quem obedece? Quem pune?
Quem indica a culpa no volume do ventre?
Quem macho, quem cona? — isso, precisamente,
o espaço insalubre entre as coxas das fêmeas.
Será isso a moral, a punição por antecipação?
A perversão?)




1.5.23

Autoficção

Nascera
privilegiada entre privilegiados,
herdeira e testamentária da
desigualdade,
usufrutuária da miséria de séculos,
cúmplice e familiar da ostentação,
prometida daqueles
capazes de comparar
a obediência dos outros,
de os usar, de os humilhar,
e os condenar sumários
à subserviência.
Gerações.
Nascera,
e a consciência da iniquidade
tinha-a levado a recusar precocemente
as mais diversas formas de opressão.