19.10.24

Prémios literários


Parecia-lhe pouco,
os quinze minutos
prometidos por Warhol.
No mundo luminoso
da literatura portuguesa,
todos os autores, todos os poetas
deveriam ter direito a um prémio por ano.
Um, pelo menos. Os melhores (os mais
produtivos, os mais bem relacionados,
os mais capazes de encenar a sua própria
consagração) mereceriam por prerrogativa
um prémio por estação. Era devido.
Se fôssemos pragmáticos como os ingleses,
organizados como os alemães, e generosos
na rectórica como os franceses,
conseguiríamos mesmo
estabelecer um calendário
e assegurar que um mesmo autor
constasse no júri e na lista de premiados.
Não seria fácil, admitia, mas já faltara mais,
lembrava-se de alguns nomes.
Na verdade, na verdade, um prémio por dia,
sabemos bem o bem que lhes fazia.





15.10.24


A fundo perdido

Segundo o The Guardian,
o rendimento médio dos escritores
teria caído
sessenta por cento.
ao longo das últimas duas décadas.
Escrever, enquanto profissão,
estava a tornar-se
cada vez menos compensador.
Havia quem hesitasse, quem desistisse.
Mas talvez
escrever não fosse uma profissão,
e afinal quarenta por cento de nada
era exactamente o mesmo que
cem por cento de nada,
e no fundo, no fundo,
abrir as pernas sempre pagou melhor.

(Adenda: os dados
reportavam-se ao Reino Unido. Aqui,
o rendimento médio situava-se agora
abaixo do salário mínimo.
E havia outros dados:
assimetrias de sucesso público,
desigualdade de género, étnica, etária,
fazendo da escrita um reflexo
de todas as disparidades sociais.
— Em Portugal, pensava,
a situação não chegaria a tanto:
nunca a ninguém, na sua lucidez,
bastaria um vestígio,
ocorreria viver da literatura.)





14.10.24


Amor, babel e a solidão da língua

L’amour, est-ce se faire cadeau 
l’un à l’autre
de sa propre solitude?
Seria isso, perguntava, duplicando a pergunta
e fazendo da dúvida
uma forma afável de complacência. Seria isso,
repetia (estava, repare-se, a ler Clarisse Lispector
na tradução francesa,
poderia tentar uma retroversão,
mas era provável que o resultado não respeitasse
o original:
Será o amor dar de prenda
um ao outro
a sua própria solidão?
Ou, noutra versão:
Será o amor fazer presente
ao outro
a sua solidão?
Ou ainda, cada vez mais distante: 
Será o amor devolver
ao outro
a solidão?
Estava certamente errada. Talvez houvesse
um talvez na frase. Tinha o livro na estante,
não iria confirmar), aquilo que lhe prometiam?




11.10.24


A literatura enquanto sinal vital

Il n’y a dans son écriture
rien de plus, rien de moins
qu’une respiration faite phrase,
diz Didi-Huberman,
a propósito das crónicas
de Clarisse Lispector.
Nada mais, nada menos (o enunciado
ganhava ritmo com a tradução.
Tornava-se outro, talvez:
a aliteração em m fazia de cada advérbio
o reverso simétrico do anterior,
ou seja, o mesmo, mas com outro nome)
do que uma respiração feita frase.
— Esta poderia ser, supunha,
uma definição de literatura. A de
alguns, no mínimo. A de algumas.
Haveria outras. Uma ética das emoções,
acrescenta Didi-Huberman.
— Também poderia ser isso. E talvez aí,
no íntimo do íntimo das mulheres tristes,
se pudesse saber o que significava escrever.





1.10.24


Outra vez o Ventura

Mas desprezo, desprezo,
desprezava os oportunistas,
os homens baixos e sem escrúpulos,
de língua abjecta e alma imunda,
que se faziam fascistas
apenas pelo poder,
e aos quais não restava
um só sopro de dignidade.
Já tinha visto outros como eles.
Todos sabiam como terminavam:
afundar-se-iam
nos seus próprios excrementos
e seriam arrastados
no lixo da história.
Mas,
antes disso,
não tinha nome nem número 
a dor que produziam. O mal.





28.9.24


Lamento para memória futura

Vivera anos como se o mundo
estivesse algures em outro lugar.
Tinha o tamanho de um nome.
Via-o, se fechasse os olhos. 
Gesto a gesto, minuto a minuto
— era único
e estava condenado.
Depois transformara-se em algo
só seu.
Escondia-o no fundo de si mesma,
meiga e grave, como quem canta,
no escuro,
canções de embalar a uma
criança morta.




25.9.24


Policromia de género

Segundo convenção,
nas figuras gregas do período arcaico,
a pele dos homens
está tingida de vermelho,
a das mulheres, de branco.
Brancos os braços, branco o rosto,
branco o colo
que emerge das túnicas.
Era simbólico, supunha. Admitia
interpretações.
As mulheres seriam poupadas
ao seu próprio sangue. O das veias,
o do desfloramento,
o da menstruação. Um ideal inteiro
de pureza e de exclusão — preferia
não comentar.
Quanto aos homens,
e de acordo com a sua suposição
(não apenas empírica, reconhecia,
preconceituosa),
o vermelho diria do sangue e do saque,
da crueldade e da coação,
da morte
que sempre lhes empapava a pele.
Não havia água que os lavasse.





22.9.24


Gloomy Sunday

Ocorria-lhe,
na posição fetal  em que quase sempre
acordava, se seria possível desaparecer
por um acto de vontade.
Assim, só,
como se o nada se abeirasse da cama,
afastasse o lençol
e a cobrisse numa noite fechada.
Uma decisão sem regresso.
Cerrar as pálpebras e retirar-se dos olhos
e da consciência,
afundando-se no colchão
como os corpos na terra 
que os cobre e os come.




18.9.24


Boustrophedon

Da esquerda para a direita, primeiro,
depois da direita para esquerda, e
desta para a direita, sem a suspensão
de quem corre o olhar incansavelmente
da esquerda para a direita, fazendo
em vazio a viagem de regresso.
Da esquerda para a direita, primeiro,
depois da direita para esquerda,
(e o que teria sido de nós, pensava,
da própria poesia,
das normas, das estruturas formais,
se este tivesse sido
o sistema de escrita adoptado?
E os olhos, seriam os mesmos?
Seria o mundo outro, sem privilégios
nem hierarquias? Seria o mundo
mundo?) como os passos de um boi
jungido ao arado.





6.9.24


Teoria geral da dominação

Encontra-se aí, afirma Foucault,
(O Uso dos Prazeres, uma história talvez
da moral sexual no mundo clássico)
toda uma dramaturgia da alma
lutando consigo própria e contra
a violência dos seus desejos.
E isso, o desejo,
não seria senão lugar de queda
e de ferida.
Na hierarquia do corpo,
a cabeça situava-se acima
e as outras partes
(essas, propriamente designadas
por baixas)
num plano inferior, arrastando para a lama
tudo o que na alma houvesse de verdadeiro.
Falava da fome, supunha.
A repressão (o outro nome daquilo a que
em outro plano se designava por cultura,
ou seja,
uma forma social de organização da dor)
agia pela reprodução das condições de carência. 




19.8.24


Drama literário

O poeta (ou, na verdade, 
o que restava dele —
carcaça de vaidade e de
afectação)
andava há demasiado tempo
a espreitar-lhe as cuecas.
Rondava-lhe a saia, hesitava, sem
esconder a baba e a transpiração.
Dar-lhe-ia um prazo.