17.1.25

A banalidade do bem ou a moral como uma disciplina da anatomia


Una cosa 
(afirma Beatriz de Vicente, Madrid,
56 anos, advogada, defendendo 
o casamento aberto)
es abierta entre las piernas
y otra es abierta en el corazón.
Lera e engolira em seco.
Não o teria dito, mas não o questionava.
Tal implicava, supunha,
separar o corpo do coração,
a carne do afecto,
libertando as coxas
para um prazer sem culpa nem compromisso.
Talvez, enquanto penalista,
essa mulher soubesse que a melhor mentira
é aquela que se expõe na plena luz do dia.
Aquela de quem somos
a segunda pele.
E do resto,
do ciúme e da ameaça de solidão,
 (A veces duele, a veces rompe)
é desviar os olhos e não fazer perguntas:
No lo sabes, no lo sabes, no lo sabes.




14.1.25


Time-sharing

Denunciava o romance,
cláusula a cláusula,
como quem denuncia um contrato abusivo.




6.1.25


Reciprocidade

E o que é que queria que ele
quisesse dela? Que a quisesse.
Que a visse não a ela, mas a ela como
cada uma das mulheres.
Que a fizesse
(boca, coxas, mamas, cona,
— tudo o que pudesse ser tocado, tudo
o que pudesse ser mordido, tudo o que
pudesse ser penetrado, a pele, os poros,
as pupilas) carne de cada corpo
que tivesse visto, que a imaginasse
e a fizesse parte
de uma noite de fêmeas, uma época,
uma idade
da qual ela fosse a presença plena,
tal como cada lâmpada
é presença da luz.
E queria que ele soubesse que, dele, 
esperava sobretudo o domínio da língua.
Pedia-lhe que evitasse os lugares-comuns.




5.1.25


Logique de la Sensation

Gostava de lhe tocar. Gostava sobretudo
de lhe tocar. De lhe sentir a massa,
o peso, a densidade,
a existência como coisa física. 
Uma vida animal.
Poderia beijá-lo ou não, deixar-se beijar,
não faria diferença.
O importante era a pele. Despi-lo,
a camisa, o cinto, as calças,
estender os dedos e
sentir-lhe o calor. Mais macio no ventre,
nas costas, mais áspero nas coxas,
e outra vez macio, nos pés,
brancos como papel.
Abria a mão inteira e espalmava-a
contra os seus braços, o peito,
as nádegas firmes, à procura apenas
da forma e da figura. Coisas concretas.
Depois, erguer os joelhos,
abrir as pernas, fazer-se penetrar
e esperar que ele fizesse o seu trabalho,
não passavam de um lugar de chegada.
O ponto de partida era a existência dele
como corpo e como carne,
quente e vivo enquanto o tivesse nas mãos.




1.1.25


Perp walk

Mostrava as mãos (as algemas
amarravam-nas uma à outra como
se alguém temesse que ousasse usá-las),
mas não
reconhecia responsabilidade.
Fazia do seu corpo o corpo da culpa,
exigia embora a inimputabilidade
das crianças,
dos dementes e dos homens de fé,
aqueles para quem, como às mulheres,
não chegou ainda a idade da razão.
Prescindiria dela.
Olhava em volta e não
via nenhuma. Apontavam-na a dedo, mas
nunca há razão
em quem confunde a justiça com a lei.
Não baixaria a cabeça.




28.12.24


A linguística como disciplina moral

O signo como
o casamento-padrão:
 a unidade linguística mínima
— um significante, um significado,
indissociáveis e ligados por
uma relação arbitrária.




26.12.24


Symbolon

Não haveria a outra metade.
A ter existido (algum dia,
algures, nos olhos, na língua,
nas dobras da saia
ou no côncavo das coxas),
ter-se-ia perdido
antes de chegar a dividir-se.
Tal divisão (equitativa, desigual?,
a quem caberia a parte do poder?)
não seria mais do que
o mito fundador do modelo-padrão
— o do género, o do comportamento, 
o das expectativas:
aquele que se encobre
na plena luz do dia 
e subordina a boca,
a alma e os outros orifícios.



24.12.24


Luigi Mangione

Nenhuma morte é justificada,
mas as de todos
fundam as de alguns.
E o que é que esperavam?
Que baixasse a cabeça, arrastando
os pés
a caminho do matadouro?
A justiça
(aquilo que designam como
justiça)
é o dolo que cola a moral burguesa,
aquela que nos tolhe a mão,
nos tapa a boca e dita a culpa
com o dedo apontado.
É preciso cortá-los,
o dedo e a culpa.
Atirar a matar.
Nunca há segunda oportunidade.


 


22.12.24


Meia-voz

Para o que tinha a dizer,
bastava-lhe a metade que faltava.




20.12.24


Dunning–Kruger effect

Não encontrava outra explicação,
estava lá tudo — a definição própria
da literatura. Do que escrevia,
pelo menos: o viés cognitivo,
a crença cega nas capacidades
(as suas, as da língua,
as dos olhos, as dos dedos que
soletravam sílabas),
e a percepção distorcida do desempenho.
A ignorância, diziam-lhe, produz
mais confiança do que o conhecimento.
Mas a arrogância, poderia acrescentar,
é a lama da qual emerge o mundo.
O dizer
sem saber o que diz, o escrever
sem o que escrever, o ler, o ver, o tocar,
a divergência, o equívoco, 
a falha consentida do desfasamento:
não, já não,
ainda não, ainda nunca.
Não era um erro de percepção.




31.10.24


De gueto em gueto

Não me entendam mal. Não quero
pregar o amor,
escreve Theodor Adorno,
em Educação após Auschwitz,
onde mais uma vez procura pensar
a barbárie inscrita no coração da Europa.
Penso que a sua pregação é inútil,
prossegue, 
pois as pessoas que devemos amar
são elas próprias incapazes de amar.
E como, de facto, amar aqueles 
que não sabem amar?
Teria razão, antes do tempo,
o judeu exilado: a deficiência de amor
pertencerá a todos, sem excepção,
e ela via como, oito décadas depois,
aqueles que tinham sofrido
o gueto de Varsóvia eram eles próprios,
frios e sem memória,
os responsáveis pelo gueto de Gaza.
Todos o víamos.