16.4.25

Legal definition of woman


Quem lhes dera que fosse
assim tão simples.
Não era. Nunca seria.
Poderiam tentar,
mas tarde ou cedo todos
(todas?)
acabariam com os olhos
na palma das mãos.
O esquerdo, na mão direita.
O direito, na esquerda.
Continuariam a não ver.




8.4.25


La plus belle pour aller baiser

Talvez Paris,
ocorria-lhe,
na década de sessenta do século XX,
tivesse constituído o melhor momento
da história da humanidade,
ao mesmo tempo
lugar de início e ponto de chegada,
testamento de fé e de impiedade,
religiosa
profanação da alma e castigo da carne,
dúvida, certeza, declaração de intenções,
Duras, Truffaut, Resnais, Godard,
Foucault, 
Derrida, bien-sûr,
no ano prodigioso de sessenta e sete.
Sessenta e oito, a seguir.
D’ailleurs, qu’est-ce qu’on sait ?




31.3.25


Exame de consciência

Não podia apontar o dedo.
Ela própria,
na devoção descrente e ritual
de quem faz das palavras lugar de trabalho,
não era senão
um epígono da criatividade do Ocidente,
a manifestação atávica do poder normativo
do heteropatriarcado branco - eram estes
os termos, não eram?
Restava-lhe assumi-lo, só,
na rendição vergonhosa que,
como Síndrome de Estocolmo,
a fazia falar a língua do carcereiro,
converter-se aos seus deuses e oferecer-se
na cama. Seria esse o seu sacrifício.






27.3.25


O terror instrumental do imaginário colectivo

Via que havia sangue
a escorrer-lhe dos olhos. 
Se vinha de dentro ou de fora,
dependia apenas da perspectiva.



26.3.25


Consciência de si

Talvez (mas como medir
o peso de um talvez?
Afirmação de fé,
de dúvida, afirmação apenas
da falta de fé que permitiria
dizer que sim e que sim,
de olhos fechados e coxas abertas?)
a Fenomenologia do Espírito
fosse a definitiva
revelação do sentido do mundo.
Uma epifania dos olhos, dos dedos
e da língua,
uma forma frágil e final
de consciência cega.
O desejo, supunha. A existência do outro
enquanto carne, coisa e palavra.
Nem ponto de partida nem de chegada,
falha, desvio, 
estado de transição entre diferentes
figuras do nada.




13.3.25


Hauntology

Falava de fantasmas, de facto.
Do tempo (o out of joint
de todas as formas de consciência:
o espanto, o medo, a vergonha,
o amor), do não,
do já não e do ainda não.
Do nunca como eufemismo dos olhos
e da ponta dos dedos — aquilo 
que os ingénuos tomavam por poesia.
Da sombra e da assombração. Da luz.
Do deslumbramento. Do poder ter sido.
Corpo, presença, ou nome no qual
não coubesse o mundo.




6.3.25


Lamento e profissão de fé de verdadeira vocação poética de uma alma excluída da glória precoce das vinte e cinco fêmeas antologiadas

Saberia ser o que lhe dissessem:
ser poeta e ver mais longe,
mas não tão longe que 
avistasse a vertigem (aceitaria a mão
se lha estendessem),
recitar uns versos, a voz impedida,
mas sem mostrar as lágrimas (não queria
parecer fácil),
entreabrir a blusa até ao terceiro botão,
(mas não mais do que isso, não era oferecida).
Acreditava na poesia, 
entregaria o resto à imaginação.
Nunca é fácil ser só o que se é.
Recolheria a pose, o estatuto,
a dádivas de mel dos seguidores,
nomeações para prémios,
convites para colóquios, feiras e festivais,
— aceitaria o estatuto que lhe concedessem:
clandestina, refugiada, pária, apátrida.
Não faria diferença, não era ninguém,
esconderia as dúvidas e a cama vazia
(aí onde, apenas aí, havia um vislumbre
de profundidade), e talvez então
tivesse direito a ver o seu nome numa hantologia.




4.3.25


Veículo semiótico de penetração profunda

Ninguém ignorava do que se tratava.
Era uma coisa, carne, 
não um conceito.
Dispensava o calão,
mas era claro o falocentrismo
(o falhanço, de facto,
embora isso fosse redundante)
das palavras enquanto
instrumento de emancipação.
Far-lhe-ia falta, a fome.




1.3.25


O homem que tentou matar Valerie Solanas

Vivia de expedientes.
Supusera que o assassínio da autora do 
SCUM Manifesto o tornaria famoso. 
Não suportara o que lera:
ser homem era ter inveja 
dos órgãos reprodutores da mulher, 
vulva, útero, mamas.
Ser homem era ser
a escumalha da escumalha.
A deficiência era constitutiva.
Não sabia o que fazer.
Poderia procurar uma fêmea,
mergulhar-lhe entre as coxas
e desaparecer como desapareceria
tarde ou cedo o género masculino,
ou poderia contra-atacar.
Esperou-a à porta da editora,
acompanhou-a até ao interior do edifício
e tirou a arma.
Três tiros, enquanto ela estava ao telefone.
Falhou os dois primeiros,
o terceiro atravessou-lhe o corpo.
Levaram-na para o hospital. Sobreviveu.
Ele entregou-se ao final do dia.
Confessou o crime.
Dera-se a si próprio nome de Andy Warhol,
era um falhado.




26.2.25


Dispositivo semiótico autónomo

Não duvidava do que se tratava.
Já ouvira
chamar-lhe outras coisas
(isso, aquela coisa, a condição,
o espaço do prazer ou do pecado,
o locus horrendus da imaginação).
Sublinhou a lápis.
O calão costumava
ser menos sofisticado. 





7.2.25


No medical evidence

Sete recém-nascidos em cuidados neonatais.
Mortos.
Outros sete homicídios na forma tentada.
Quinze penas de prisão perpétua.
Um acto de uma crueldade premeditada e insensível,
segundo o juíz que a condenou. E ainda:
Uma acção totalmente contrária aos instintos humanos
e ao cuidado devido aos bebés.
Os instintos humanos, retinha. 
Lucy Letby, enfermeira
num hospital do norte de Inglaterra, 
trinta e quatro anos,
a primeira página dos tablóides,
o rosto do mal, sem remorsos nem atenuantes,
na perversão de quem não responde
nem respeita o mais básico dever de uma mulher,
aquele que nos dita 
a hospitalidade do corpo e o cuidado das crias.
I’m innocent,
gritou, depois de condenada.
Quinze penas de prisão perpétua, mas,
de acordo com um painel de peritos em neonatologia,
nenhuma evidência clínica
de que a acusada tenha assassinado um só dos bebés.




6.1.25


Reciprocidade

E o que é que queria que ele
quisesse dela? Que a quisesse.
Que a visse não a ela, mas a ela como
cada uma das mulheres.
Que a fizesse
(boca, coxas, mamas, cona,
— tudo o que pudesse ser tocado, tudo
o que pudesse ser mordido, tudo o que
pudesse ser penetrado, a pele, os poros,
as pupilas) carne de cada corpo
que tivesse visto, que a imaginasse
e a fizesse parte
de uma noite de fêmeas, uma época,
uma idade
da qual ela fosse a presença plena,
tal como cada lâmpada
é presença da luz.
E queria que ele soubesse que, dele, 
esperava sobretudo o domínio da língua.
Pedia-lhe que evitasse os lugares-comuns.




24.12.24


Luigi Mangione

Nenhuma morte é justificada,
mas as de todos
fundam as de alguns.
E o que é que esperavam?
Que baixasse a cabeça, arrastando
os pés
a caminho do matadouro?
A justiça
(aquilo que designam como
justiça)
é o dolo que cola a moral burguesa,
aquela que nos tolhe a mão,
nos tapa a boca e dita a culpa
com o dedo apontado.
É preciso cortá-los,
o dedo e a culpa.
Atirar a matar.
Nunca há segunda oportunidade.