3.11.25

Linha de montagem


Perguntava-se se
se davam conta
da sua solidão.
Temia que sim. 
Desviavam os olhos. 
Seria insuportável. 



29.10.25


Pavana para uma Infanta Defunta

Nenhuma morte mais
do que as outras mortes.
Nenhuma a sua, nenhuma às mãos
de quem, diria, como ser quem era?
Saberia a própria natureza do mundo:
não está nem se espera.




14.10.25


Os nossos oprimidos são melhores do que os vossos

Protestam porque é próprio
protestar,
mas fazem-no na nossa língua,
podemos compreendê-los
e obrigá-los a obedecer.
Revoltam-se, mas raramente 
se tornam violentos,
reconhecem as regras, a derrota,
e não contestam a punição. 
Cavam as suas próprias sepulturas. 



3.10.25


A Grande Poesia

A grande poesia das pessoas grandes
(homens, na maior parte, 
as mulheres raramente
atingiam o tamanho,
caíam do crivo,
eram vendidas como refugo
e acabavam nas prateleiras do fundo)
tinha palavras pesadas e profundas
que só as pessoas grandes
podiam transportar.
Erguiam a cabeça e abriam a boca:
grandes e gordas, no fundo da garganta,
as palavras inchavam como rãs no cio.
Mas tal era o fardo que elas próprias,
as pessoas grandes,
se viam esmagadas pelo seu peso.
Salvavam-se, então,
acumulando loas de louvor à Deusa
e fazendo-se profetas da lama e do lodo
que  lhe invadia as veias.
Curvavam a cabeça,
cheiravam-lhe a saia, o suor, a urina,
e tapavam os olhos para não ouvir.




2.10.25


Moral provisória

Nunca perder uma primeira oportunidade
de criar uma primeira má impressão.




30.9.25


Os universos da crítica – elogio fúnebre

Um índice seguro da mediocridade
daquilo a que
só com boa vontade
ainda se designava por
Literatura Portuguesa
(esta era uma percepção subjectiva
e, como tal, social, política
e eticamente condicionada, 
sujeita a ser desmentida pelos factos, 
embora duvidasse dos factos) era o facto
de que nem mesmo os próprios autores
se liam uns aos outros.
Mútuo e merecido, o desprezo era a norma.




14.9.25


Os Tiranicidas — ficha técnica

Museu Nacional Arqueológico, Nápoles,
Colecção Farnese.
Números de inventário: 6009-6010.
Mármore,
cópia romana do original grego
do século V.
Harmodius (1,85 m) e Aristogeiton (1,83 m)
são representados
empunhando cada um duas espadas,
aquelas com as quais se prepararam para
assassinar Hipparchus,
da família do tirano ateniense Híppias,
crime pelo qual foram,
às mãos do déspota, torturados e assassinados.
Depois,
a democracia de Atenas elevou-os
à condição de mártires da liberdade.
As suas estátuas, da autoria dos escultores
Kritios e Nesiotes.
erguiam-se na Ágora,
onde recebiam a veneração devida aos heróis.





30.8.25


Acção política 

O tempo fechado como um punho
que se cerra sem nada dentro.
Poderia erguê-lo em protesto, resistência
ou agressão, esmurrar os dentes não sabia
de quem,
mas o interior permanecia vazio
e os dedos
acabavam sempre por ceder.
Quem nada tinha nada podia.



21.8.25


A lenda da língua

De acordo com uma fábula de Phaedrus,
quando Prometeu moldou a humanidade,
modelou a língua da mulher
a partir de matéria extraída
dos genitais masculinos
(A fictione veretri linguam mulieris.
Affinitatem traxit inde obscenitas.
Fábulas, 4.15 — a citação
era decorativa, não lia latim).
Daí a obscenidade inata da fala feminina:
a mulher usa um membro usurpado,
uma língua impúdica por natureza.
Era desagradável, dispensava a moral, 
mas talvez o autor
não estivesse completamente errado.




2.8.25


Ensaio visual




23.5.25


O sono da razão engendra monstros

Não aprendia nada, ninguém,
nunca ninguém,
e via-nos condenados
a repetir os erros
como se a história mais
não fosse do que
o acumular de matéria inflamável
que tarde ou cedo a todos
iria consumir.
Não distinguiria os primeiros dos últimos.