23.6.25

The book boyfriend


Era uma tendência, diziam,
as raparigas apaixonavam-se
pelo homem perfeito — terno, atencioso,
rico, inteligente. E etc. Parecia nem precisar
de ser bonito. Bastava-lhe olhá-las nos olhos
e não existir senão nos romances românticos.
Simply put, a book boyfriend is a character
you can’t stop thinking about
— and longing for — beyond the page.
Havia precedentes, sabia-se. 
Os herdeiros dos livros da Jane Austin,
o Mr. Rochester da Charlotte Brontë,
e outros, e outros
que inflamavam a imaginação
de Emma Bovary,
fazendo-a supor-se personagem de uma novela.
Aquela na qual o mundo obedecia aos olhos
que percorriam as páginas. Aquela na qual
o corpo e o coração coincidiam com as coisas.
Era uma ficção, acabara mal, 
mas talvez, na verdade, ninguém duvidasse
da distinção entre  real e ficção.
Seria por isso que ninguém podia preferir
a pobre e crua realidade do real.
A literatura não tinha outra utilidade.




19.6.25


Estudos literários II — o século XXI

Insistia. Fazia de conta,
escondendo a suspeita de que continuava
(continuávamos todos, os cada vez menos
que perfaziam o todos — quase ninguém)
a fingir que isto tinha alguma importância:
mastigar palavras, alinhá-las no papel, 
no ecrã, acumulá-las, imprimi-las,
publicar, vender, comprar,
alimentando a marcha de um autómato
(ou da caricatura de um autómato.
Sem olhos, sem boca,
sem mãos sequer capazes de modelar
no escuro uma alma de lama) que
progredia por reflexo e inércia.
Algum dia alguém o pusera em movimento,
e ele (ela? Era indiferente, o género)
continuaria a caminhar até tombar.
Ou já tinha tombado, e apenas os crentes
se obstinavam em não ver a queda,
amparando-lhe o passo e supondo que,
porque caminhava, mesmo cadáver
ainda poderia prosseguir.
Mas o mundo já estava em outro lugar.




17.6.25


As Lágrimas de Eros

E talvez, afinal,
isso a que chamava
literatura
(ou poesia, ou arte,
ou outra palavra
com quatro letras)
não tivesse outro fim
nem outra função
senão a de fazer de si mesma
fim e função. Sem órgãos,
sem geração,
no corpo e contra o corpo,
como corpo que faz
da cama tecto e túmulo.
Sem língua, sem som,
na boca e contra a boca,
como voz que é eco
nos olhos dos mortos.




15.6.25


Estudos literários — o século XXI

Resultado da autocomplacência,
do desleixo e do surrealismo serôdio,
a poesia portuguesa tinha-se transformado
numa coisa cansada, que nunca se negava
ao que lhe pediam.
Ninguém exigia muito, era o que oferecia.
Haveria entrega e empenho,
mas quase sempre a incompetência
ocupava aquilo que teria sido
espaço de exigência e de sobressalto.
Seria possível uma história da época,
sem se lhe referir. Era prescindível,
e isso nem chegava a ser acusação.
Constatava-se, com um encolher de ombros.
Alguém seria capaz de lhe dizer o que é que,
de facto, a maior parte dos poetas
(respeitava-os a todos, cada um, cada uma,
não era isso que estava em causa)
tinha para dizer? Do que é que falavam,
qual o mundo que mostravam para lá umbigo
— o próprio, o da língua e de uma muito pobre
ideia de poesia?




10.6.25


Amarelo morte

A doçaria conventual,
estava cada vez mais convencida disso,
era a memória viva da violência
e da sujeição. A sombra de séculos
de opressão e iniquidade, que se ocultava
no amarelo ovo da massa mole.
O espectro da clausura e das mulheres
reprimidas, mortas em vida,
na promessa de um céu que nunca
tocariam,
mas mastigável como o caminho
que trazia o açúcar
(o veneno mortal do capitalismo)
até às cozinhas dos conventos.
Os sacos chegavam sempre sujos,
manchados do saque e do sangue,
do cativeiro, da escravatura e do estupro,
do inumano da economia de plantação.
Da fome de uns e do luxo dos outros.
Da soberba, da sujeição de quem
entrega a alma
por não ter como pagar ao barqueiro.




5.6.25


Três cartazes à beira da estrada III

(inserir fotografia — ele próprio, o bem-aventurado)
Não acham que já chega de aturar este bazófias?



4.6.25


Três cartazes à beira da estrada II

A indignidade de um
(inserir fotografia)
não pode ameaçar a dignidade de todos.




3.6.25


Três cartazes à beira da estrada I

Vende-se boçalidade e mau hálito ideológico
(inserir fotografia).




29.5.25


Iconografia do mal: a Terra Prometida

Saber dizer aos mortos
que a morte é a própria
prova da culpa.
Que cada um tem sempre
menos do que merece
e que eles (crianças, mulheres,
homens de mãos nuas)
mereciam duas mortes, no mínimo,
porque depois de mortos
precisavam ainda
que o nome lhes fosse
arrancado da carne
e que ambos (o nome e a carne
— as ruínas, se preferirmos)
fossem atirados para o esquecimento.
Só assim a boa consciência
ficaria em paz consigo mesma.




28.5.25


Zeitgeist

A dificuldade
(aquela que em público
e para si própria
podia admitir)
era não ceder ao cinismo.




24.5.25


Pária por entre párias

Ódio, uma vez ódio. Dor,
uma vez dor. E sempre, sempre,
a insolência fácil
de quem não tem princípios e tudo
é meio ao serviço de um fim, que é
ele próprio tão dispensável quanto
qualquer fim — basta que sirva.
E a memória,
involuntária como um espasmo,
transforma-se em matéria de enchimento,
a pedra triturada
que se despeja para os alicerces,
os quais, a transbordar
já não suportam o peso da infâmia.




23.5.25


O sono da razão engendra monstros

Não aprendia nada, ninguém,
nunca ninguém,
e via-nos condenados
a repetir os erros
como se a história mais
não fosse do que
o acumular de matéria inflamável
que tarde ou cedo a todos
iria consumir.
Não distinguiria os primeiros dos últimos.




22.5.25


Código de conduta

Recusar o uso degradado da língua.
Não responder a provocações.



20.5.25


Compromisso, público e político

Não iria resistir
(à boçalidade, à ignorância, ao preconceito,
à exclusão, à xenofobia, à arrogância,
ao populismo, à demagogia, à manipulação),
iria investir.
Os cornos baixos e a língua em faca.




27.3.25


O terror instrumental do imaginário colectivo

Via que havia sangue
a escorrer-lhe dos olhos. 
Se vinha de dentro ou de fora,
dependia apenas da perspectiva.