18.11.24

Como transformar o tempo em acontecimento

 
(Talvez, se precisasse de uma,
esta pudesse ser
uma definição de literatura.)



16.11.24


De la littérature considérée comme une tauromachie

E, a ser, quem era
o touro, de que cor,
qual a massa, o peso,
em que língua
o poderia alguém enunciar?
Caberia na boca, ou esta,
a garganta aberta até ao coração,
teria de o expulsar,
como quem vomita o veneno que
já submeteu o corpo e condenou
a alma?
E, do touro, essa forma de fé
de quem nunca chegou a acreditar,
sobraria o golpe, o sangue?
E quando, em que momento,
baixaria a cabeça, os cornos,
e atingiria o mundo?




14.11.24


Uso corrente

Continuava a fazer de conta
(e não continuariam todos?
Os todos
quase nada e cada vez menos)
que alguém lia e que a alguém
importava
o que quer que escrevesse.
Não importava. Não importava o quê,
não importava o quem. Fosse ela ou
quem fosse.
A escrita (literatura: ficção, poesia,
o que se preferisse) era um
lugar morto, um altar de cinzas
de poucos para poucos
e de, não tardava, ninguém para ninguém.




12.11.24


Teoria da tradução

Chegava a acreditar
que aquilo que dissesse numa língua
encontraria em outra,
se não o seu equivalente claro,
sequer o som, o ritmo, o dizer
por aproximação,
ao menos, deturpando o original,
numa epifania do erro e mal-entendido,
o sentido,
para dizer o que ela nunca
dissera, mostrar o que ela
não vira e não confessara.
E talvez, ocorria-lhe,
alguém (olhos, língua,
consciência?) habitasse o vazio
que ia de um idioma ao outro,
o fizesse seu e,
estendendo os dedos,
ocupasse o espaço do desfasamento,
como na arena o sangue preenche
os interstícios da areia.





11.11.24


2024. Causas

Conhecia as causas por que se lutava.
Havia as das mulheres — mas quais? Qual
a boa versão de ser mulher?
Qual a correcta linha de feminismo?
Havia as de todas as dissensões sexuais — o
género,
a identidade, o trânsito entre o corpo e o nome,
a repressão de uns e a repressão dos outros.
Havia as da cor da pele e da herança étnica —
recusava-se a usar a palavra raça.
Havia as do Sul — pensamento mágico,
lançando ao lixo os restos da razão iluminista.
Havia as do planeta — mas quais? As dos que
só pensavam em sobreviver,
ou as dos outros, mais ambiciosos porque,
com o frigorífico cheio,
aspiravam a escapar ao seu próprio tempo?
Havia as dos liberais — que confundiam a liberdade
com os seus próprios interesses.
Havia as dos reaccionários — que confundiam a história
com o espelho retrovisor.
Havia as dos revolucionários — fiéis ao Não
como instrumento do tempo,
e dispostos a verter todo o sangue que não fosse o seu.
E havia
as dos mortos — esses que, íntimos e tristes,
já não tinham causas
nem princípios, só conheciam o fim. Sabia-se solidária.




8.11.24


Auto-retrato

Queria que a visse
como era.
Um indício de rugas em redor
dos olhos,
as estrias nas mamas,
a celulite nas nádegas,
o ventre vazio,
os pêlos que subiam pelas pernas
e envolviam a vulva.
Depilava-os até das virilhas, 
mas não 
no interior das coxas. Queria-o
denso e fundo como
a soleira da sombra.
Acima, nos mamilos,
ainda haveria com que alimentar o mundo. 
Era tudo o que tinha.
Já fora mais amável. 
Deixara, entretanto, de confiar no tempo.





6.11.24


Ofício de trevas

Em volta o mundo,
o sangue,
a lama, as lágrimas, 
o fedor da ignorância,
da cobiça e do poder
sem escrúpulos.
Não uma ameaça,
mas a arrogância feita
época e idade,
a miséria
ingénita e congénita
de quem fecha os olhos,
sem suportar aquilo 
em que acreditava.





4.11.24


Identidade, actriz

Por vezes, demasiadas vezes, 
via-se sozinha à mesa do café, 
sentindo-se irremediavelmente
a personagem de não sabia
que filme falhado.
Já o teria visto, talvez.
Não compreendia como acabara ali.
Teria preferido que lhe explicassem
o enredo,
que lhe substituíssem as falas.
Que lhe pagassem para
continuar calada.



31.10.24


De gueto em gueto

Não me entendam mal. Não quero
pregar o amor,
escreve Theodor Adorno,
em Educação após Auschwitz,
onde mais uma vez procura pensar
a barbárie inscrita no coração da Europa.
Penso que a sua pregação é inútil,
prossegue, 
pois as pessoas que devemos amar
são elas próprias incapazes de amar.
E como, de facto, amar aqueles 
que não sabem amar?
Teria razão, antes do tempo,
o judeu exilado: a deficiência de amor
pertencerá a todos, sem excepção,
e ela via como, oito décadas depois,
aqueles que tinham sofrido
o gueto de Varsóvia eram eles próprios,
frios e sem memória,
os responsáveis pelo gueto de Gaza.
Todos o víamos.




30.10.24


Logocentrismo ou confissão ingénua

(Conseguia imaginar
o mundo como uma comunidade.
Pessoas que escreviam, que liam,
que discordavam, que discutiam, 
que se apaixonavam,
que se desiludiam
e desviavam os olhos,
ou se calavam mudas
de admiração.
Mas uma comunidade,
um lugar no qual, nas palavras,
coubesse o mundo. Ou no qual,
transformando o mundo
em palavras,
as palavras pudessem
transformar-se em mundo.)




28.10.24


Elegia

Ich will mit Dir schlafen, escreve
Marina Tsvetáeva
a Rilke (Rainer, como lhe chama)
no Verão de 1926.
Ele responde,
apaixonado pelas palavras
de uma mulher que nunca viu
e que nunca verá, e ela acrescenta
que quer adormecer ao lado dele,
a cabeça no seu ombro esquerdo, 
o braço no seu ombro direito
e afundar-se no sono, escutando
o bater do seu coração. São ambos
casados, têm dezassete anos
de diferença,
ele retrai-se, ela insiste, e ele responde
que sim, sim, sim, sim,
mas a distância é distância e
a morte, morte. Ele morrerá
no final desse ano, ela
(suicídio? as versões divergem)
quinze anos mais tarde, depois
da miséria e da tortura.
Ele tinha cinquenta e um anos, ela,
quarenta e oito, à data da morte.




23.10.24


Economia de mercado

O Fardo do Homem Branco,
edição de 2013,
33.00 US dollars.
Era o preço na Amazon.com,
sem incluir despesas de envio.
O mesmo livro estava à venda
por 10 euros
nas livrarias portuguesas. Acrescia que
algumas faziam dez por cento de desconto, 
e o volume ficaria por 9. Seria o preço
justo, reconhecia, se havia justiça
para um pequeno livro cor-de-rosa
que teria o mérito de uma certa ideia
de poesia. A crueza, o despudor
e a arrogância de mulher jovem
que supõe que o mundo
lhe cabe entre as coxas.
Converteria os convertidos.
Mas por trinta e três dólares
estava claramente inflacionado.
Por esse preço, ela própria preferiria
encomendar os livros da Anne Carson.




19.10.24


Prémios literários

Parecia-lhe pouco,
os quinze minutos
prometidos por Warhol.
No mundo luminoso
da literatura portuguesa,
todos os autores, todos os poetas
deveriam ter direito a um prémio por ano.
Um, pelo menos. Os melhores (os mais
produtivos, os mais bem relacionados,
os mais capazes de encenar a sua própria
consagração) mereceriam por prerrogativa
um prémio por estação. Era devido.
Se fôssemos pragmáticos como os ingleses,
organizados como os alemães, e generosos
na rectórica como os franceses,
conseguiríamos mesmo
estabelecer um calendário
e assegurar que os mesmos nomes
constassem no júri e na lista de premiados.
Não seria fácil, admitia (havia quem tivesse
dignidade), mas já faltara mais,
lembrava-se de alguns autores.
Na verdade, na verdade, um prémio por dia,
sabemos bem o bem que lhes sabia.





14.10.24


Amor, babel e a solidão da língua

L’amour, est-ce se faire cadeau 
l’un à l’autre
de sa propre solitude?
Seria isso, perguntava, duplicando a pergunta
e fazendo da dúvida
uma forma afável de complacência. Seria isso,
repetia (estava, repare-se, a ler Clarisse Lispector
na tradução francesa,
poderia tentar uma retroversão,
mas era provável que o resultado não respeitasse
o original:
Será o amor dar de prenda
um ao outro
a sua própria solidão?
Ou, noutra versão:
Será o amor fazer presente
ao outro
a sua solidão?
Ou ainda, cada vez mais distante: 
Será o amor devolver
ao outro
a solidão?
Estava certamente errada. Talvez houvesse
um talvez na frase. Tinha o livro na estante,
não iria confirmar), aquilo que lhe prometiam?